Concedi entrevista ao jornalista Rodrigo Rangel, da revista Crusoé, na qual falo sobre o combate à corrupção e às fake news, bem como sobre as perspectivas para o futuro do Brasil. Falei também sobre as Eleições 2020 e cautela que este momento de pandemia nos impõe na tomada de qualquer decisão que diga respeito à realização do pleito.
O link para a matéria e a íntegra da entrevista – que foi concedida por e-mail – seguem abaixo.
https://crusoe.com.br/edicoes/100/precisamos-e-de-gente-honesta/
‘Precisamos é de gente honesta’
Luís Roberto Barroso esbanja otimismo ao falar do futuro do Brasil. Um dos defensores mais ardorosos das ações anticorrupção deflagradas nos últimos anos pela Lava Jato e suas coligadas, o ministro do Supremo Tribunal Federal lê como poucos os maus hábitos da sociedade brasileira e, em especial, dos políticos que se lambuzam com dinheiro público. E é justamente pela mudança de ânimo trazida pelas investigações que levaram corruptos e corruptores às barras da Justiça que Barroso acredita haver motivos, sim, para crer que o país está mudando, apesar das múltiplas tentativas dos acusados de reescrever a história. “Sinto que ali na frente, passada a tempestade política, econômica e ética que vivemos, vamos experimentar uma virada histórica importante”, diz ele nesta entrevista para a edição 100 de Crusoé.
Para Barroso, a despeito dos múltiplos problemas que ainda enfrenta, o Brasil tem um futuro promissor. “O que precisamos é de mais gente competente, idealista e honesta em postos chave. Infelizmente, ainda há muita mediocridade, falta de idealismo e incorreção.” Em isolamento desde a semana passada, quando participou com colegas de uma reunião com Davi Alcolumbre, diagnosticado logo depois com a doença do coronavírus, o ministro, de 62 anos, respondeu as perguntas por escrito – ele brinca que, nesta fase de recolhimento, a única mudança efetiva em sua rotina é o fato de não estar obrigado a usar terno e gravata. “Faço um pouco de tudo: elaboro e revejo votos, despacho com meus assessores por celular, voto no plenário virtual, converso com outros ministros…”
Nesta quinta, Barroso escapou do recolhimento forçado e foi até a sede do Tribunal Superior Eleitoral. Em 19 de maio, ele assume a presidência da corte e já vem montando a equipe que vai auxiliá-lo na tarefa. Como responsável pela condução das próximas eleições, o ministro defende que ainda é cedo para pensar em adiamento do pleito em razão da pandemia e não vê com bons olhos a ideia, ventilada por políticos, de unificar o calendário, deixando a corrida municipal para daqui a dois anos. “A ideia de prorrogar mandatos me assusta e não acho que seja bom para o país cancelar eleições e juntar tudo em 2022.” Eis a íntegra da entrevista.
O Brasil tem jeito?
Claro que sim. Nós nos atrasamos um pouco na história. Mas sinto que ali na frente, passada a tempestade política, econômica e ética que vivemos, vamos experimentar uma virada histórica importante. O Brasil é um país no qual, quando se coloca a pessoa certa no lugar certo, tudo vai bem. Vou evitar dar exemplos, para não politizar a conversa. Mas o que precisamos é de mais gente competente, idealista e honesta em postos chave. Infelizmente, ainda há muita mediocridade, falta de idealismo e incorreção.
Temos assistido a sucessivas reações aos avanços trazidos pela Lava Jato no combate à corrupção e à impunidade. Como explicar isso?
Em entrevista que dei a você mesmo, há exatos três anos, eu falava da dificuldade das elites brasileiras em condenar os seus parceiros de mesa, os seus iguais. E de que precisaríamos de mais de uma geração para criarmos uma cultura de igualdade e de honestidade. Por aqui, bastava a pessoa ser rica. Se era correta ou não, era visto como mero detalhe sem grande importância. É triste dizer, mas muita gente no andar de cima, muita mesmo, tem um parente, um amigo próximo, um ente querido, quando não um parceiro, envolvido em alguma coisa errada. Nesse quadro, formou-se um arco de alianças vastíssimo em defesa da impunidade. Vai da esquerda à direita. A incorreção, no Brasil, reuniu adversários ideológicos de vida inteira.
Corremos o risco de repetir aqui a experiência da Itália com a Mãos Limpas?
Tenho fé que não. Na Itália, eles mudaram a legislação para dificultar a punição de corruptos, impedindo prisões e acelerando os prazos de prescrição. Em seguida, demonizaram juízes e procuradores que enfrentaram a corrupção entranhada no estado. E, finalmente, cooptaram a imprensa, com os mecanismos tradicionais de cooptação. Embora, entre nós, se possam detectar alguns desses movimentos, o fato é que temos hoje uma sociedade mais consciente, mais mobilizada e mais exigente, que desenvolveu uma enorme demanda por integridade. Não acho que seja fácil ignorá-la. Além disso, temos uma imprensa bastante plural e independente. Boa parte da imprensa no Brasil, como é notório, tem sido dura crítica de todos os governos. E, além de tudo isso, temos uma rede social que, apesar de muitos problemas – campanhas de desinformação e de ódio, tribalização etc. – tem a virtude de acabar com o monopólio da informação. Hoje em dia, todo mundo sabe em tempo real o que está acontecendo. Embora eu seja contra agressões e grosserias, está cada dia mais difícil para um vigarista sair na rua.
De tudo o que a Lava Jato revelou em seis anos, o que mais escandalizou o sr.?
A naturalização das coisas erradas. A extensão, profundidade e pluralismo da corrupção. A generalização da cultura de que os agentes públicos são sócios do Brasil, donos do Brasil, e podem levar vantagem indevida em qualquer contratação pública. A cultura do achaque, seja no banco público, na CPI ou na desoneração tributária. O fato de algumas pessoas terem mais raiva dos juízes e procuradores que puxaram o fio da meada do que dos corruptos que desviaram milhões. Também me espanta que ninguém jamais tenha reconhecido o erro e pedido desculpas. Todos dizem que foram perseguidos. Na tradição judaico-cristã, as pessoas até podem merecer o perdão. Mas antes precisam se arrepender. Ou seja: ao menos no tribunal divino, esse povo está todo condenado.
Há uma tentativa de recontar a história da operação a partir da narrativa de que ela cometeu abusos e injustiças. Vai dar certo?
A Operação Lava Jato deixou de ser uma específica operação policial/judicial para se tornar o símbolo da luta contra o desvio de dinheiro, a desonestidade e a corrupção no Brasil. Muita gente foi colhida nessa malha. Alguns devolveram milhões de reais. Outros foram presos e cumpriram ou estão cumprindo pena. Esquemas que existiam havia décadas precisaram ser desfeitos. Não é difícil imaginar a quantidade de rancor que os protagonistas da operação – policiais federais, procuradores e juízes – despertaram. É claro que em seis anos de operação, sob o olhar severo dos melhores advogados do Brasil e de boa parte da imprensa, você pode encontrar erros. Mas no julgamento imparcial da história, ela será vista como um marco na mudança de paradigmas no Brasil. Como eu escrevi aqui mesmo na Crusoé, não há como apagar da história o deputado correndo com a malinha de dinheiro, o senador achacando o empresário, as colaborações premiadas com o número das contas clandestinas em que os dinheiros foram depositados, a fortuna que a Petrobras teve que pagar aos investidores lá de fora, a devastação nos fundos de pensão, a tunga no crédito consignado. Enfim, a lista é grande. Agora: cada um nessa vida acredita no que quer. Mas ninguém tem o poder de mudar os fatos.
Ainda estamos falhando na tarefa de ensinar às novas gerações que vale a pena ser honesto?
Não. Essa guerra nós estamos ganhando. As novas gerações estão se formando, crescentemente, com uma enorme demanda por integridade, idealismo e patriotismo. Aos poucos, nós estamos elevando o patamar ético do Brasil. Eu sou professor há quase 40 anos. Ainda hoje eu dou aula na graduação e na pós-graduação. Aliás, eu gosto de dizer que eu sou um professor na essência, e circunstancialmente estou ministro. Pois bem: eu vejo os meus alunos e me encho de otimismo e de energia boa. Eles têm um nível de consciência e de exigência muito maior do que o das gerações anteriores. Temos andado na direção certa, ainda que não na velocidade desejada.
Quais são, a seu ver, os problemas estruturais mais prementes do país hoje e como deveríamos lidar com eles?
São tantos que é até difícil sistematizar. Vou eleger, um tanto arbitrariamente, três, sem hierarquizá-los. Em primeiro lugar, nós precisamos de um pacto de integridade. A integridade vem antes da ideologia. Ela só tem duas regras básicas: no espaço público, não desviar dinheiro; no espaço privado, não passar os outros para trás. A partir desse denominador comum, a democracia tem espaço para progressistas, liberais, conservadores. Mas há uma regra prévia: eu sou honesto com você e você é honesto comigo. Considero que esta será a grande revolução brasileira. O segundo problema é, certamente, a desigualdade. Ou, mais propriamente, a pobreza, porque algum grau de desigualdade será sempre inevitável. Mas é grave a situação de um país no qual 1% da população detém 50% da renda. Ou num mundo em que 62 pessoas têm mais riqueza do que 3,6 bilhões. Em terceiro lugar, competência. Precisamos acabar com esse país do compadrio, em que as relações pessoais, de afeto ou nepotismo, estão acima do mérito e da virtude. Escolher os melhores nomes para as posições relevantes. Gente que entende, que tem experiência, que sabe o que está fazendo. Ainda somos muito amadorísticos. A lista poderia ser infindável. Saneamento básico, meio ambiente, preservação da Amazônia, redução do estado econômico-administrativo-burocrático, ampliação, dentro das possibilidades fiscais, do estado social (educação, saúde, Bolsa Família, Fies, Minha Casa, Minha Vida), capitalismo de verdade (e não esse que vive de financiamento público e de reserva de mercado), incentivo ao empreendedorismo etc.
O sr. tem estudado as deficiências do sistema de educação brasileiro. Onde estão os maiores gargalos?
Vou focar na educação básica, que inclui o ensino infantil, o ensino fundamental e o ensino médio. Aí está a principal causa do nosso atraso. Só universalizamos a educação básica no Brasil 100 anos depois dos Estados Unidos. Temos que correr atrás do prejuízo. Há muita gente boa estudando o tema no Brasil: Fundação Lemann, Todos pela Educação, Instituto Ayrton Senna. Eu escrevi um trabalho acadêmico recente no qual tabulei o material dessas instituições e, também, do Banco Mundial, da Unesco, da OCDE e identifiquei como principais problemas: a não alfabetização da criança na idade certa, que é a 2a série primária; a evasão escolar no ensino médio, que faz com que um percentual de quase 40% dos jovens não o conclua; a deficiência de aprendizado: os jovens terminam o ensino fundamental e o ensino médio sem terem assimilado os conhecimentos básicos. Algumas soluções consensuais: ênfase na educação infantil, desde os primeiros meses de vida (pesquisas vêm documentando que este é o melhor investimento que se pode fazer); escola em tempo integral, passando de 5 para 8 horas, com adequação de atividades curriculares e extracurriculares; atração e capacitação de professores, o que envolve não apenas salários, mas reconhecimento institucional. Outros pontos importantes são o ensino profissionalizante, o aprimoramento da gestão e o fim da indicação estritamente política de diretores, sem um critério de mérito.
Em que medida a falta de educação do brasileiro atrapalha o desenvolvimento do Brasil e a jornada do país rumo a um lugar melhor na escala civilizatória?
A deficiência na educação traz três problemas. Em primeiro lugar, a não conclusão do ensino médio faz as pessoas viverem vidas menos esclarecidas, menos iluminadas, com menor número de opções profissionais e existenciais. Em segundo lugar, compromete a produtividade do trabalhador brasileiro, que é inferior à dos nossos principais concorrentes internacionais. E, em terceiro lugar, tem por consequência um número reduzido de pessoas com real capacidade de pensar o país e traçar os seus rumos.
Desde sua chegada ao Supremo, o que mais chama atenção do sr. nas rodas do poder de Brasília?
Não as frequento. Não saberia responder (risos).
O Judiciário ainda é visto como um dos grandes responsáveis pela cultura de impunidade no país. Onde está o erro?
O Judiciário não é um mundo à parte. Ele reflete a cultura geral do país. Como o país começou a mudar, o Judiciário também está mudando. A meu ver, há problemas na legislação, na jurisprudência (veja essa questão da 2ª instância!) e na cultura judicial. Até pouco tempo atrás, prevalecia o entendimento de que a criminalidade do colarinho branco não era grave e de que a corrupção fazia parte do jogo. Acho que essa mentalidade está sendo aos poucos superada. Mas a história não é linear, infelizmente. Ela é feita de idas e vindas, de avanços e de recuos.
O sr. tem esperança de que os juízes brasileiros um dia deixarão de ser tão tolerantes com colegas de toga envolvidos em malfeitos?
Eu não gostaria de confirmar a premissa da pergunta. Mas o país tem dificuldade geral de punir malfeitos. Está mudando, mas o processo não é instantâneo.
Como enxerga o inquérito secreto aberto no Supremo a pretexto de investigar ataques à corte? Como integrante do tribunal, o sr. tem sido informado sobre o que há nos autos?
Não gostaria de me manifestar sobre este assunto fora do tribunal.
As instituições e a democracia estão em perigo no Brasil atualmente?
Nós temos 30 anos de estabilidade institucional desde a Constituição de 1988. É um recorde na história do Brasil. E não foram tempos banais. Atravessamos chuvas, trovoadas e tempestades, que incluíram planos econômicos fracassados, escândalos variados, do mensalão ao petrolão, dois impeachments de presidentes eleitos pelo voto popular… Acho que a democracia brasileira se tornou madura e sólida. O Legislativo funciona com independência. O Judiciário funciona com independência. Nessa matéria, acho que superamos os ciclos do atraso. E, verdade seja dita, se tem um lugar de onde não veio notícia ruim nos últimos 30 anos foi das Forças Armadas. Comportamento exemplar. Não tem de onde vir golpe.
Dias atrás o sr. gravou um vídeo para desmentir que tivesse apoiado as manifestações pró-governo do dia 15. A transparência é o melhor remédio para as fake news?
Pois é! Eu só me pronuncio sobre instituições, sua defesa e seu aperfeiçoamento. Eu não falo de varejo político. Então, como se divulgou falsamente que eu tinha apoiado, precisei desmentir. Respondendo à sua pergunta, a resposta é sim, transparência é muito importante na democracia. A Revolução Digital nos trouxe muitas coisas boas e produziu uma transformação profunda no modo como vivemos. Já temos até um novo vocabulário, com palavras que até anteontem não conhecíamos e que identificam utilidades sem as quais já não sabemos viver. Veja algumas: Google, Youtube, Uber, Waze, Skype, WhatsApp, Telegram, Facebook, Instagram, Amazon e Netflix. Para os solteiros também tem o Tinder (risos). Porém, ao lado de todas essas conveniências e modernidades, vieram desafios e riscos. Dentre eles estão as campanhas de ódio e as campanhas de desinformação, apelidadas de fake news. Elas devem ser combatidas com recursos tecnológicos, com informação correta divulgada para a população e só residualmente com decisões judiciais. Quanto aos meios tecnológicos, o TSE celebrou parceria com todas as grandes plataformas – Google, Twitter, Facebook, WhatsApp –, que se comprometeram a utilizar os recursos técnicos possíveis para detectar robôs e movimentos atípicos na rede. Quanto a informação de qualidade, nós utilizaremos os meios disponíveis para o TSE (Twitter, campanhas de esclarecimento), mas há um papel vital a ser desempenhado pela imprensa, que é fazer um filtro das informações, checá- las adequadamente e transmiti-las à população. Por fim, as decisões judiciais, que, como disse, têm um papel limitado. Até porque a própria caracterização do que são fake news é complexa. E o Judiciário não pode funcionar como um censor do debate público. Há hipóteses que são inequívocas. Por exemplo: se um candidato disser que o outro foi condenado por pedofilia e não for verdade, é fácil a caracterização como fake. Mas há muitos juízos subjetivos que não cabe ao Judiciário avaliar se são justos ou injustos, certos ou errados.
O sr. considera razoável a ideia, defendida por alguns políticos, de adiar as eleições deste ano?
Penso que a saúde pública, a saúde da população é o bem maior a ser preservado. Não há como desconsiderar isso. Mas nós estamos em março. As convenções partidárias para escolha dos candidatos são em agosto. A campanha começa na segunda metade de agosto. As eleições são em outubro. Portanto, a minha posição nessa matéria pode ser resumida em três pontos. Primeiro, o debate ainda é precoce. Não há certeza de como a contaminação vai evoluir. Segundo, na hipótese de adiamento, ele deve ser pelo período necessário para que as eleições possam se realizar com segurança para a população. Portanto, estamos falando de semanas, talvez dezembro. A ideia de prorrogar mandatos me assusta e não acho que seja bom para o país cancelar eleições e juntar tudo em 2022. Terceiro, a palavra final na matéria será do Congresso Nacional, a quem cabe aprovar emenda constitucional a respeito, se vier a ser o caso.
Que lições essa gigantesca crise causada pela pandemia do coronavírus deve deixar para as nossas instituições?
Ainda há muita espuma e muita fumaça para se fazerem avaliações definitivas. Mas há algumas lições claras. A primeira é para líderes nacionalistas anacrônicos: no mundo globalizado, os problemas são globais e não adianta esconder a cabeça na areia. Tal como no aquecimento global, esses líderes, porque não podem resolver o problema sem uma parceria com os demais países, tendem a negar o problema. Acho que uma outra lição possível é a de que, num mundo que exacerbava o individualismo e a indiferença, a solidariedade se tornou uma questão de vida ou de morte. De modo que se sairmos todos mais cosmopolitas, com um olhar fraterno para o mundo e mais solidários, teremos saído melhores do que entramos.